Fugimos de Tikal e seguimos para para noroeste, rumo à terras desabitadas, na esperança que os soldados da Feiticeira Negra não nos perseguissem. Meus novos companheiros eram, até esta tarde, os seguintes: Rasputin Delarose, um homem dos ermos, versado na linguagem dos animais e da natureza, além de um exímio arqueiro; Selena, uma mulher das armas, treinada em antigas técnicas marciais; e Yuko, uma garota de olhos amendoados e pele amarelada, com passos leves como as folhas no outono. Ambas aprenderam o que sabem com o mesmo mestre, um ancião chamado Tokai Kunishige.
As duas garotas estavam de partida naquele dia, Yuko seguindo instruções do seu avô mestre, Selena para evitar que um de seus dois irmão fosse levado como escravo, pena reservada àqueles que não tinham dinheiro para os impostos. Na tentativa de abandonar a cidade antes dos besouros chegarem um acaso trágico levou à morte os dois garotos. Selena fora de despedir de seu mestre, que orientou a neta a se juntar à ela, já que não havia mais nada a aprender naquela cidade, e era hora das duas entenderem o que era tornar uma arte viva. As duas fizeram um sinuoso em confuso caminho entre os casebre de Tikal afim de evitar as ruas principais e possíveis encontros com soldados. O atraso do desvio foi fatal. Chegaram a tempo apenas de presencair a morte dos irmão de Selena, um teve a garganta rasgada por um espada em frente sua casa o outro foi crivado de flechas ao tentar correr. Tomadas por um furor de batalha fizeram os besouros tombarem um a um, com ajuda de flechas vindas do alto, que só pararam para se perguntar depois, e ao fazê-lo viram Rasputin pela primeira vez, que não se identificou, apenas disse “Inimigos dos besouros são meu aliados!”. O suficiente para que momentaneamente se unissem para fugir daquela cidade. Se apossaram da carruagem usada para levar escravos e partiram para a saída da cidade e assim se deu o encontro narrado em páginas anteriores. Só para o caso de restarem dúvidas, a carruagem tombou na fuga, nos deixando apenas os Lagarks.
Estávamos no Cerrado dos Lagartos, terras perigosas para qualquer um que não fosse um predador e nuvens cinzentas começaram a aparecer. Ao vê-las Rasputin colocou em palavras a suspeita que parecia óbvia à todos nós: tínhamos um temporal pela frente. Nos apressamos então, forçando os animais a apertarem o passo, que já não era lento, em direção à uma montanha que se erguia, quase solitária, em meio a humildes colinas, arredondas pelo tempo. A montanha era imensa e razoavelmente próxima à Tikal. Quatro dias em marcha de viagem, sem montarias, mas fizemos o percurso em apenas um dia, forçando ao máximo os pobres Largarks que montávamos. Um deles morreu de exaustão, após cruzarmos o sexto morro. Paramos, achando melhor deixarmos para a montaria que nos restava apenas nossa modesta bagagem (uma lança, uma alabarda, duas tochas, uma pederneira, umas poucas roupas e mantimentos), e seguirmos a pé, com passo lento, já que há algumas horas não avistávamos mais os besouros que nos seguiam. Estávamos distante da estrada que levava até Melkar e de qualquer outra. Provavelmente nossos perseguidores acharam que a fauna local teria mais chances em nos capturar do que eles próprios, que ainda tinham os impostos para cobrar.
Rasputin achou um rastro que levava até a entrada de uma caverna. Ele nos disse que eram de um homem de tamanho mediano e outro enorme, pelo tamanho e as profundidades das pegadas. Também concluiu que não carregavam carga e que pareciam apressados. Resolvemos nos abrigar na entrada da caverna, com cautela pois desconhecíamos as intenções dos dois sujeitos. Qualquer problema, disse eu, os rastros indicavam apenas dois homens, enquanto nós éramos em três. Três armados e capacitados para combate eu, é claro, me excluí desta conta...
Lá dentro Yuko trocou algumas palavras com a escuridão para logo depois acender uma tocha. A chama revelou um gigante dormindo e outro homem, negro como carvão, escondido atrás de uma rocha, e este indagou nossa procedência e intenções, enquanto brandia uma arma que consistia numa bola de ferro presa à um cabo de metal por uma corrente. Depois me disseram que se chamar mangual esse instrumento da morte. Yuko disse que fugíamos dos besouros e isso bastou para que a atmosfera hostil desaparecesse. Fizemos uma fogueira e falamos um pouco sobre nós.
O gigante se chamava Tyrus, não trajava nada além de uma tanga de pele de raposa e uma velha capa de couro bovino. Carregava um machado na cintura e uma faca longa junto a canela direita, ambos em más condições de conservação. Ele deve ter uma espada a mais de altura do que um homem alto, além de músculos que pensei serem capazes de erguer um boi, suposição que se mostrou irônica ainda naquela noite. Nem um pouco habilidoso com palavras e nem no trato social, apesar de tentar ser amigável. O seu companheiro se chama Tundio. Disse vir de um reino a leste de Tavres, que sofria constantes ataques da Feiticeira Negra, sempre em busca de novos escravos. O preto vistoso usava uma calça de um tecido resistente, botas de couro, e nada no tronco exceto uma pele de leão que, apesar do ambiente seco e poeirento, parecia limpa, e dava à ele uma aura de imponência, como a de Rasputin. Ambos fugiram de um campo de escravos e formaram um grupo de resistência, para onde levavam outros ex-escravos que libertaram nos três ataques que realizaram, sendo dois à fazendas e o terceiro a uma mina de carvão. O acampamento dos revoltosos foi encontrado e destruído pelo servos da Feiticeira Rainha, e eles eram os únicos sobreviventes.
Selena resolveu entrar um pouco mais para o fundo da caverna e lá encontrou algumas ossadas, que pareciam de homens, e pediu para que Rasputin desse seu parecer. O andarilho disse que aqueles restos eram antigos e encontrou junto à eles rastros do maior casco bifendido que já vira. Estes levavam para o fundo da caverna. Apesar de todos acharmos pouco seguro uma investigação naquela altura da noite, nossa temosa espadachim resolveu que seguiria as pegadas. Yuko disse que provavelmente a morte dos seus dois irmãos mais novos não deixariam a companheira ter uma boa noite de sono por um bom tempo, e nos tranqüilizou ao seguir em silêncio sua parceira. O resto de nós preferiu descansar para na manhã seguinte prosseguirem na exploração da caverna, todos juntos. Sugeri que se nos revezássemos na guarda.
Mostrei para nosso dois novos amigos a descoberta que fizera em Tikal, e acho que os toquei tão profundamente quanto aos outros três, e pareceu surgir uma nova chama naqueles olhos desesperançados e cansados. É uma pena que neste mundo em que vivemos as pessoas fiquem assim tão logo que dominam seus sentidos. Deixei que eles dormissem, pensando na música e prolonguei por mais duas horas as notas do meu violão, enquanto fazia a guarda. Fui interrompido por um urro que veio das entranhas da terra. Temi por Yuko e Selena, mas sabia que aquele grito não era humano. Meus companheiros se colocaram rapidamente de pé e todos corremos em socorro, para as sombras. Encontramos Yuko algum tempo depois, e ela disse que foram atacadas por um boi-de-pé, e este levara Selena. Temendo o pior, resolvemos seguí-lo o mais rápido possível, antes que ele comesse nossa companheira. Rasputin prontamente se colocou nos rastros da criatura do ponto de onde Yuko disse ser o local do encontro, e à frente, com ele, foi Tyrus que parecia farejar a criatura.
Passamos por um grande salão, onde ouvimos som de águas abaixo de nós e uma agradável brisa nos recebeu. Nossa tochas eram insuficiente para iluminar mais do que três passos, então não pude contemplar o que era de fato o lugar onde estávamos, mas sei que era grande, pela forma que nossa vozes se espalhavam na escuridão. Cruzamos duas pontes de pedra e avistamos um grande desenho na parede, que emitia uma suave luz azulada, e parecia ter algo escrito. Nenhum de nós era capaz de ler aquilo, mas essa a menor das preocupações naquele momento. Ao lado vimos uma grosseira cabana de palha e madeira, de onde vinham sons baixos e guturais, e supomos ser alí a morada do monstro. Estávamos certos.
Este, ao notar nossa presença, se lançou contra nós numa furiosa investida, com seus grandes chifres apontados e foi parado pelos fortes braços do Tyrus que, após Rasputin cravar sua espada o mais fundo que pôde, lançou a criatura selvagem sobre um velho muro, que estava uns 8 passos de distância. De lá ela não se levantou.
Na cabana. Alias, creio que 'ninho' seja uma palavra mais adequada. No ninho encontramos Selena junto de outros três bezerros, que ainda não ficavam em pé. Cuidamos de nossa parceira enquanto Tyrus matava os filhotes, para comê-los, ele disse. Armamos nosso novo acampamento e e assamos um dos novilhos. Enquanto isso resolvi investigar aquela porta e, incapaz de abrí-la, sentei e comecei a tirar alguns sons de meu instrumento. Eram notas dessas que pegamos no ar, que só podem ser tocadas se formos com elas, e que escapam aos dedos se tentarmos retê-las. Após a refeição todos dormiram, menos eu que, apesar do sono, fiquei junto do meu violão, e ficaria ali até uma música de lá saísse. E saiu. Não bastando se agradável aos ouvidos ela ainda abriu a porta, de onde saiu um sujeito atarracado e maltrapilho, com a barba mais longa que já vi, e gritou numa notável exclamação: Estou livre! Incapaz de dizer outra coisa ele o repetiu muitas vezes, enquanto nos abraçava de forma que nos pareceu inofensiva. Se não o fosse estaríamos encrencados, mas após as desventuras daquele dia ninguém mais tinha ânimo para atitudes violentas. Não naquela noite.
O convidamos para que sentasse junto à nós, se acalmasse e contasse sua história. O sujeito disse estar naquele cômodo (que era grande e comprido, em formato de 'T') preso já há três séculos. - Nós anões vivemos muito mais do que qualquer humano. Não é estranho um de nós ver trezentos ou quatrocentos invernos. - disse ele. Seu nome era Mordanin, e, como nosso cansaço já era demasiado e nem uma história seria suficiente para nos manter acordados, pedimos que ele terminasse sua história no dia seguinte.
Creio que dormimos a metade de um dia, mas era um sono merecido. Ninguém fez guarda, imprudência que não deve se repetir. Mordanin nos mostrou onde poderíamos beber água e expelir os restos da refeição do dia anterior, dentro do já citado corredor em 'T'. Uma fonte à direita e um buraco no outro canto, feito sob um pavimento de paralelepípedos, que fora removido e, e com as pedras restantes, foi feito um assento. Feita a refeição carnívora da manhã voltamos à indagar o pequeno sobre sua história, que vou relatar aqui.
Dol Kuzdul era o nome deste reino, e significa 'Reino sob a Montanha'. Alí existiram imensos salões - Anões precisam de espaço! disse nosso novo amigo -, com riquezas mil e conforto inigualável. Com a chegada da Feiticeira Negra, nos tempos em que a memória é incapaz de lembrar, uma sombra se lançou sobre toda a região da Procelária, mas não sobre Dol Kuzdul, que estava protegido por cordilheiras e outros caminhos sinuosos que só seus habitantes conheciam. Demorou muito tempo para que uma guerra fosse declarada pela Senhora de Tavres, que só o fez após consolidar seu poder na superfície, e quando isso aconteceu terríveis hordas e poderes sombrios se lançaram sobre os anões.
- Somos duros como rocha! - disse Mordanin - Sobrevivemos à ferimentos que matariam qualquer homem. E como as montanhas é a nossa teimosia: imovível!
Por séculos a guerra se estendeu e a outrora chamada Cordilheira do Ferro, onde haviam imponentes montanhas escarpadas, hoje não passa de uma colina, sem sequer um penhasco digno de nota. Àquela guerra só sobreviveu uma montanha, abençoada por 'Dûm Nietor', o senhor da terra. Mordanin chamou esse senhor de 'Deus', e ao ser indagado sobre o que aquilo significava foi interrompido por Tundio, que explicou serem senhores imortais de poder inigualável, que concedem bençãos ao mortais, e punições quando necesserário. Como reis, só que inalcançáveis nas alturas em que se encontram. Ele era o servo de um, Agasu, o leão da guerra. Perguntei se a Feiticeira Negra era uma 'deusa', e Tundio pareceu ofendido com a pergunta, que não respondeu.
Dia após dia os barbudos obtinham vitória contra as hostes estrangeiras. Demonstraram à Rainha Negra as dificuldades de entrar na moradas dos anões sem convite. No entanto sua queda veio de dentro. Duras eram as armas e armaduras do anões, mas assim também eram seus olhos e ouvidos. Sem que ninguém notasse, poderes sombrios penetraram pelas maciças paredes do reino, e os portões foram abertos. Pegos de surpresa por Cibele, a dragonesa de sete cabeças, e outros horrores, não houve tempo para organizar as defesas e uma medida desesperada foi tudo que restou à Tarn Mão-de-Martelo, o Rei sob a Montanha. Ele, junto de sua guarda, enfrentou o vorme e seus lacaios, enquanto o que sobrara de seu povo fugia por uma saída secreta, atrás da sala do trono. Mordanin, que era membro dessa guarda, participou da batalha até que seu senhor tombasse, já quase sem carne nos ossos. Seu último pedido foi seu último guarda sobrevivesse, contasse a história do que aconteceu ali, para que um dia o orgulho de seu povo ressurgisse, e seu reino fosse retomado.
Assim foi. A salvação do anão foi que Cibele era grande demais para seguí-lo têrredor de fuga, e ela engordou ainda mais, devorando seu exército, depois que este reuniu os tesouros de Dol Kuzdul sob sua barriga. Três séculos ele passou se alimentando de cogumelos e bebendo de uma fonte.
- Água ajuda a arejar o ambiente, por isso as colocamos em todo lugar que sobra espaço. - justificou o velho anão.
Ele não pôde sair dali porque a porta secreta só podia ser aberta por uma certa canção. Canção esta que misteriosamente encontrei em meio as rochas e as cordas do violão. Por libertá-lo e ouvir sua história ele nos deu acesso à um armorial de emergência, que ficava também naquele têrredor, onde meus companheiros renovaram seu arsenal. Selena, sempre ousada, usou uma alabarda para puxar algo do tesouro, enquanto nos armávamos e Cibele dormia. Era um desenho que chamou de 'pintura'. Nesta obra ela, após muito contemplá-la, encontrou o que disse ser um 'mapa', escondido em meio à tinta.
-Meu pai – ela disse – Certa vez me falou que mapas sempre levavam à algum lugar!
Como não tínhamos para onde ir resolvemos seguir o tal 'mapa'. Convidamos o velho anão, mas Mordanin disse que ali permaneceria, e pediu para que contássemos a história do acontecido à todos do seu povo que encontrássemos, enquanto ele estaria arrumando o lugar para quando chegasse mais gente. A parte de trás do palácio, por onde entramos, era um posto de vigília, e ele tornaria o lugar novamente o que fora antes.
Sobre a música, já tenho toda a melodia, que Mordanin disse ser de uma canção antiga anã, que nem ele mais se lembrava. Ele também disse que não tinha letra, então comecei a escrevê-la. Até agora só consegui três versos, são eles:
Hall Of The Mountain King
Mysteries of ages told, stories now will unfold
Tales of mystic days of old are hidden in these walls
Partimos então atrás de novas aventuras...